Este texto pertence à dissertação de Mestrado em Comunicação Social do Jornalista Rodolfo C. Martino que discorreu sobre o tema: “Museu do Ipiranga. A Nova Imagem de uma Instituição Centenária”,com defesa em fevereiro de 2.001 no pós-graduação da UMESP.
Trânsito congestionado a qualquer hora do dia nos complexos viários Escola de Engenharia Mackenzie e Maria Maluf, que inclui as avenidas do Estado, Juntas Provisórias, Tancredo Neves, Bandeirantes, Ricardo Jafet e as vias Anchieta e Imigrantes. As intermináveis obras do Fura-Fila. A maior favela (a de Heliópolis) com quase 100 mil habitantes. Três distritos policiais. Dois hospitais públicos (Ipiranga e Heliópolis) e mais quatro particulares. Seis hipermercados, 28 linhas de ônibus (inclusive intermunicipais), seis núcleos comerciais espalhados pelos 34 subdistritos curiosamente chamados de vilas e jardins, dois shoppings centers, sede de cinco instituições de ensino superior, indústrias, bancos, igrejas...
Para quem chega ao Ipiranga neste setembro de 2001 é difícil se transportar para o século XVI e recontar a história da terra dos índios guaianazes. Para quem. De algum modo, participa do dia a dia de seu quase um milhão de habitantes é estranho ir mais longe do que o célebre Grito da Independência e imaginar o bairro como um descampado sem fim...
Até para os estudiosos é impossível voltar no tempo e reconstruir a história com perfeição. Por falta de documentos, registros, ele próprios tem versões diferentes. Há quem diga que o bairro não é quatrocentão. Outros dizem que é ainda mais idoso. E até mesmo sobre o século XIX há controvérsias. Não escapa sequer ao célebre quadro de Pedro Américo, dizendo que a reprodução não foi fiel ao verdadeiro Grito da Independência. Há também muita poesia sobre o romance de doma Domitila, a Marquesa de Santos, com D. Pedro I nas terras da então Chácara do Ipiranga que pertencia ao pai da Marquesa.
Como se vê, a história do bairro se confunde com a própria História do Brasil e, principalmente, com a História do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, mundialmente conhecido como Museu do Ipiranga.
De todas as polêmicas a mais singela diz respeito à origem do nome Ipiranga.
Segundo Martius, no tratado clássico sobre termos brasílicos, a denominação deriva da contração de duas palavras tupis que significa “água vermelha”. Com o dicionário de João Mendes, há outra interpretação: “leito desigual e empinado”.
Diante de tantas controvérsias, o memorialista do bairro, Renato Ambrogi, autor do livro Relatos Históricos do Ipiranga, cita que, ao consultar as Atas da Vila de São Paulo, a primeira citação aos caminhos do Ireiripiranga é de 1.584. A época, os portugueses não haviam assimilado o linguajar dos índios guaianazes, primeiros habitantes do lugar e pronunciavam o nome, quase sempre associado ao rio ou ao caminho que levava ao Litoral, de diversas maneiras: Piranga, Hiporanga, Ibipiranga, Opiranga e Ireiripiranga, Ambrogi:
“No início do século XVI, o Ipiranga era habitados pelos índios guaianazes que viviam da caça e da pesca. Por toda a região, havia mato e cerrado rasteiro. As terras eram ruins para plantação. Só nas regiões ribeirinhas é que se fazia boa colheita(...)Eram muito imprecisos os limites da localidade, conhecida apenas uma paragem para o Caminho Mar. Naquela época, já existiam enchentes. Porém, com várias tribos acostumadas a usar canoa, as inundações não causavam nenhum transtorno. Só quando vieram os brancos percorrendo a região com cavalos, o Tamanduateí passou a ser um grave problema. Quando chovia não era possível a passagem e a prosseguir viagem. Eram obrigados a esperar as águas baixarem.”
Em entrevista ao jornal Gazeta do Ipiranga, em 27 de setembro de 1.984, a arquiteta da Divisão de Iconografia e Museus da Secretaria Municipal de Cultura, Maria Cecília Coelho, confirmou a versão de Ambrogi sobre as paragens do Ipiranga no século XVI. Ressaltou que a região é hoje uma parte muito reduzida daquela original.
“Tudo era muito diferente. O atual Rio Água Funda era denominado de Riacho do Ipiranga e foi ele quem deu nome a região. Os documentos mostram que toda área delimitada por esse rio até a divisa com São Bernardo pertencia ao Ipiranga. A R. Domingos de Moraes (antes Estrada do Carro), Vila Mariana, Cambuci. Tudo era parte de uma mesma região.”
Reafirmou que o bairro por muitos anos, talvez séculos, foi considerado apenas uma paragem do Caminho do Mar. Por essas terras passavam tropeiros, viajantes que aqui pousavam, para prosseguir viagem no dia seguinte. Já na segunda metade do século XVI a região era citada como lugar de muitas chácaras e fazendolas, onde se oferecia pouso para viajantes. Os povoadores pioneiros, por não disporem de bons caminhos que os levassem ao centro da cidade e também porque os índios hostis poderiam surpreende-los de tocaia, só saiam para outros locais quando realmente era necessário.
O Ipiranga é um afluente do rio Tamanduateí, pela margem esquerda do município de São Paulo. Está aproximadamente a seis quilômetros da praça da Sé, considerada o marco zero da cidade. Até o início de sua área, limita-se com o bairro do Cambuci.
Atualmente, a Administração Regional do Ipiranga tem a seguinte delimitação: ao Norte, tem como limite as administrações regionais da Sé e Mooca, São Bernardo ao Sul, São Caetano ao leste e Vila Mariana ao oeste. Sua rede hidrográfica é ampla: Rio Tamanduateí, Riacho do Ipiranga, córregos como Jaboticabal, Cacareco, Capão do Rego e Moinho Velho.
UMA LENTA EVOLUÇÃO
Nos séculos XVI, XVII e XVIII, o Ipiranga era uma região obscura entre o Cambuci e São Bernardo da Borda do Campo. Conhecida apenas como uma paragem, não progrediu nesse período porque a população era pequena e tinha muitas dificuldades para chegar ao centro comercial do Páteo do Colégio.
No início do século XIX, três grandes propriedades compunham a essência da região. A sesmaria Guarapuava (que abrange o Bosque da Saúde, parte do Jabaquara até os terrenos próximos ao atual Parque da Independência, numa área compreendida entre o Riacho Ipiranga e o antigo Caminho do Mar); a Chácara da Glória passou em 1824 para o tesouro federal, sendo utilizada pelo Seminário das Educandas da Glória e depois foi loteado para núcleos coloniais, correspondendo ao que seria hoje a Vila Mariana, Aclimação e Cambuci; e a terceira e última propriedade era a Chácara Ipiranga que pertencia ao Visconde João de Castro Canto e Mello, pai da Marquesa de Santos. Essa era a área mais fértil, compreendendo a Estrada de Santos, Rio Tamanduateí e o Córrego do Moinho Velho. Embora fosse a menor em extensão, ficou conhecida por ser a mais bem equipada para a produção, possuindo olaria e, mais no final do século, plantações de uvas e um ramal da estrada de ferro.
No decorrer do século XIX, inúmeras propriedades foram se instalando nessas terras, áreas que tinham como marcos importantes o Caminho do Mar (ou antigo Caminho para Santos) e a colina próxima à ponte do Ipiranga por ter sido o local onde transcorreu o episódio da proclamação da independência em 7 de setembro de 1.822.
Na mesma edição, arquiteta Maria Cecília, da Divisão Municipal de Iconografias e Museu, explicou:
“No fim do século XIX, essas grandes chácaras começaram a ser loteadas. A família Klabin, proprietária de grande parcela das ações do Banco União, ficou com uma boa parte das terras. Esse casal tinha duas filhas, uma era esposa de Lasar Segall e a outra do arquiteto Gregóryo Vearchawsky. Agora, a Chácara do Ipiranga foi adquirida por várias pessoas. Entre elas, o engenheiro Luiz Pucci que construí o Museu Paulista. A Chácara da Glória ficou com o bispo Dom Matheus de Abreu Pereira, conde Vicente de Azevedo e Antonio Moraes. Tempos depois (início do século XX) o conde José Vicente de Azevedo doou parte de suas terras para instituições religiosas e assistenciais. Daí, a Avenida Nazaré ser caracterizada por casas de assistência: como creches, escolas e a Clínica Infantil do Ipiranga. E a sesmaria Guarapuava ficou com a família Fagundes Mariano.”
A região permaneceu em estado de estagnação até 1.890, quando a Câmara Municipal de São Paulo loteou as chácaras existentes que ainda continuaram em atividade durante dezenas de anos. Em 27 de dezembro de 1.918, conforme a lei número 1.631, o bairro foi elevado a categoria de Distrito de Paz, datando dessa época, os primeiros progressos verificados em seus 15,44 quilômetros de área distrital. De paragem a bairro suburbano, visto de um modo geral, até a instalação dos bondes elétricos que começaram a funcionar em 1.900, a região ainda em fins séculos XIX era citada como lugar ermo e solitário.
Foram doze as primeiras ruas que ganharam nome. De acordo com a planta de loteamento, das quais somente uma não preserva sua primitiva denominação, todas são ligadas à Independência, e aos anseios republicamos. São as seguintes: Rua do Fico, do Grito, 1.822, Cisplatina, Municipalidades, Juntas Provisórias, Gonçalves Ledo, Monumento, Guarda de Honra, Independência(sub-distrito do Cambuci), Manifesto e Estrada do Ipiranga (atual Rua Ouvidor Portugal).
A partir dessa época, mesmo perdido entre pontos importantes da cidade, o Ipiranga foi se desenvolvendo e, para isso, muito contribuiu o fato de estar justamente entre a Capital e a saída para o Porto de Santos, através do Caminho do Mar, inúmeras foram as iniciativas para se marcar o local da Independência.
Mas, apenas em 1.883, com início do projeto e da construção do monumento, hoje ocupado pelo Museu Paulista, e finalmente com a construção do atual Parque da Independência é que o bairro passou a ter uma ocupação com características urbanas. Pretendia-se que a grandiosidade paisagística do Parque e a abertura da atual avenida D.Pedro I ocasionasse uma ocupação semelhante que existia na Avenida Paulista, caracterizada pela classe emergente, industrial, que desde então se firmava no Ipiranga.
A partir daí, a região foi deixando de ser apenas o Berço da Independência do Brasil e passou a acompanhar o crescimento da cidade, recebendo levas de imigrantes italianos(colônia que iniciou a urbanização), portugueses, espanhóis, árabes, entre outros, durante a primeira década do século XX.
O BAIRRO OPERÁRIO
Por apresentar uma topografia irregular, o solo ipiranguista, ao contrário de outros locais, nunca se prestou a lavoura. Na verdade, a ocupação só deslanchou quando a argila desencadeou a primeira indústria lucrativa da região, no começo do século XX, época em que o crescimento demográfico da Capital já acarretava sérios problemas habitacionais. Em seu livro Relatos Históricos do Ipiranga, Ambrogi registra:
“De 30mil que eram os paulistanos em 1.870, a população somava quase 240 mil em 1.900, devido ao acelerado desenvolvimento demográfico que começava a criar problemas habitacionais. Foi justamente nesse período que os tijolos e telhas passaram a ser considerados produtos de primeira necessidade, valorizando as indústrias que se ocupavam em reproduzir esse material. A argila, até então sempre relegada ao segundo plano, passou a figurar entre as principais matérias primas.”
A primeira indústria da região foi a “Irmãos Falchi”. Segundo informações do escritor, dispunha de um motor de 40 cavalos, dois amassadores de argila e uma máquina capaz de produzir telhas. Em 1.905, surge o outro concorrente no ramo cerâmico, “Saccoman Fréres”, e logo depois a “Cerâmica Vila Prudente”, todas incluídas entre as cinco maiores indústrias de cerâmica do Estado em fins da primeira década.
Passou a desenvolver ainda a indústria têxtil. Em junho de 1.907, surgiu a “Linhas Corrente” junto com a Estamparia Ipiranga e a fábrica de ferro esmaltado “Sílex”. A essa época, já eram 18 fábricas empregando 6.296 operários; em 1.913, já somavam 49, empregando 16.317 homens.
O Ipiranga cresceu no embalo da industrialização. Residências, fábricas e as suntuosas mansões dos empresários (como as do Jafet, na R. Bom Pastor) tomaram conta da região. Para movimentar, as serrarias, tecelagens e laminações, os bondes e trens despejavam diariamente levas e levas de operários. Eles vinham de diversos pontos da cidade. Muitas vezes, gastavam, no mínimo, duas horas para chegar ao trabalho.
Os trilhos para a passagem dos bondes elétricos foram assentados em 1.900. No início de suas operações, convergiam para o centro da cidade e algumas linhas cruzavam um triângulo compreendido entre as ruas Direita, XV de Novembro e São Bento. Diz Ambrogi:
“O bonde elétrico, que esteve em atividade durante 67 anos, foi o precursor do transporte de massa. Desde a inauguração da primeira linha em 1.900, o Ipiranga e arredores ganharam um outro aspecto com a construção de novas casas, instalação de indústrias e aumento populacional. O bairro, em 1.920, devido ao tráfego, acusou uma população de 12.064 habitantes, saltando para 40.825 em 1.934, ocasião em que os ônibus eram ainda escassos e precários sem conforto e também mais caros e, por isso, menos usados pela população.”
Para o professor José Sebastião Witter, o Ipiranga é um bairro que merece muitas teses acadêmicas. Como professor de História em início de carreira , três décadas antes de se tornar diretor do Museu (de 94 a 99), Witter pode constatar o fascínio que o bairro sempre exerceu nos próprios moradores. As freqüentes visitas aos monumentos históricos, acompanhando alunos do ensino fundamental e médio, fez com que aprendesse a admirar “como essa gente pacata” soube trabalhar as mudanças e principalmente como soube resistir a elas quando necessário e preservar a História “com H maiúsculo”.
“O Ipiranga é uma cidade dentro da metrópole paulistana”. A afirmação agora é de outro professor, Osmar Stolagli, diretor geral do Centro Universitário Assunção, mais conhecido como UniFai, que reside no bairro desde que nasceu em 1.933.
“Sou testemunha ocular da História”- brinca o professor Osmar. Ele se recorda das grandes enchentes da década de 40 na “Ilha do Sapo”, trecho compreendido entre os rios Tamanduateí e Ipiranga que transbordavam com freqüência. Muitas vezes, não precisava chover no bairro. “É que dava aquelas pancadas de chuva na cabeceira dos rios, lá pelos lados de São Bernardo, e as águas barrentas vinham fazer estragos aqui em nossas casas”- esclarece o professor.
O que valia nessas horas era a solidariedade dos amigos. Todos se ajudavam. Quando havia prenúncio de chuva, os moradores começavam espontaneamente o mutirão pelas casas mais próximas ao leito dos rios. Iam subindo os móveis, colocando as comportas. Depois do aguaceiro, o mutirão era para lavar a rua e contar as crianças, em primeiro, e os prejuízos depois. “Era muito bonito ver aquela gente pacata, quase toda formada por imigrantes ou descendentes, enfrentando os desafios do destino. Era uma gente de princípios e que também sabia se divertir”.
Além das conversas cumpridas, do principio de noite, com as cadeiras nas calçadas, divertiam-se a passear pelos arredores do Museu do Ipiranga. “Os jardins franceses eram o lugar onde havia o footing das jovens, enquanto os rapazes as esperavam em pontos estratégicos para lançar-lhes um olhar, duas ou três palavras se tanto”- conta o professor em tom de confidência . “Muitos casamentos nasceram aí”.
Nos fins de semana, as missas na Igreja São José, fundada em 1.919pelo padre Arnaldo Dantas, eram muito concorridas. E os cinemas eram a coqueluche dos anos 50. Havia vários, onze ao todo.
Outro antigo morador, Natal Saliba, que também nasceu e viveu seus 76 anos no bairro, relaciona os cinemas que conseguiram ficar mais tempo em atividade: Dom Pedro I, Sammarone, Paroquial e o Ipiranga Palácio, esses dois últimos pertencentes aos padres do Sion. Com saudade recorda:
“Mansueto de Gregório era gerente vitalício do Cine Ipiranga Palácio. Era uma pessoa muito dinâmica e procurava apresentar bons espetáculos. Lembro que em 1.942, a seu convite, o cantor Francisco Alves, o famoso Chico Viola, veio cantar no bairro. Foi um espetáculo inesquecível. Depôs ele trouxe a beldade da época, a atriz Tônia Carrero. Uma maravilha!”.
Mas o caráter de bairro histórico sempre persistiu e, segundo o professor Witter, persistirá sempre. Em artigo publicado pelo Diário do Comércio de São Paulo, em 21 de setembro de 1.998, o professor que é de Guararema, faz questão de enfatizar na página 2 do Suplemento Especial de Aniversário do Ipiranga:
“Tenho dito com muita freqüência e repetido à exaustão que ter dirigido o Museu foi um privilégio. E esse privilégio sinto também por ter passado a conviver com o dia-a-dia do bairro. Ele é muito especial, com muita história e um sem número de estórias de seus moradores que gostam de viver neste espaço urbano tão especial da grande metrópole.
O Ipiranga é, acima de tudo um espaço onde nossa independência foi proclamada. Nas colinas do Ipiranga, o Museu-Monumento preserva a nossa memória e é ao mesmo tempo um espaço de reflexão. Ë um referencial significativo de nossas origens enquanto nação e um marco de nossa cidade. E é certamente, um patrimônio da humanidade.
O Museu, com seu acervo precioso, órgão de integração da Universidade de São Paulo, é um dos marcos do Ipiranga, sem dúvida, por sua monumentalidade. Entretanto, não se pode esquecer o papel que vem exercendo na região as demais universidades, a UNESP, a São Marcos, a São Camilo, a UniFai. E também as escolas de primeiro e segundo graus que fazem o Ipiranga um universo especial para formação de seus cidadãos.
Tenho repetido muitas vezes e agora insisto em dizer que o nosso Ipiranga é uma verdadeira cidade educativa. Essa “cidade” tem ainda a emoldurá-la o Parque da Independência e a Avenida Dom Pedro I. E não se pode esquecer de dizer que é um bairro com infra-estrutura da melhor qualidade em todas as áreas de atendimento ao cidadão.
Acima de tudo, é um lugar onde se valorizam as relações humanas e onde o forasteiro, como eu, pode ser recebido de braços abertos e se sentir, de coração um ipiranguista.”
(Publicado no jornal Gazeta do Ipiranga de 28 de setembro de 2.001 nas páginas B-4 e B-5)